Ler um conto de vez em quando
Nesta página, o autor insere um conto escolhido ao acaso, atualizado, do seu livro: Histórias que o Avô Deixou.
Os contos irão sendo substituídos com o tempo, permanecendo pelo menos um mês. Terão uma numeração não na ordem que em estão no livro e se podem observar no link acima (22 contos), mas da sua inserção neste domínio, o que permite ao visitante saber quando há um conto novo.
Conto 1, em junho de 2020
..... partindo do futuro para o presente .....
Conto 2, em julho de 2020
..... o supremo manjar daquela povoação.....
Conto 3, em agosto de 2020
..... uma impressão de aragem
silvestre .....
A Belinha, nos seus seis aninhos, ficara
deliciada com o sorriso do bebé no carrinho, quando ela o fitou, e depois
entretida a fazer-lhe momices a que ele respondia com gargalhadas sonoras,
ante o gozo da família do bebé.
Nem reparou que, entretanto, a família
dela se tinha deslocado para o outro lado da rua, prestando atenção às
pessoas que saíam da igreja, à espera da mãe-avó, que largara a família em
excursão, porque não dispensava a sua missinha de domingo.
Quando a menina olhou pela família, já
havia um magote de gente entre ela e o outro lado da rua. Da mesma maneira,
quando a mãe deu pela falta da filha no seu numeroso grupo de adultos com
várias crianças pequenas, havia também já muita gente a tapar a visibilidade
para o outro lado da rua.
―
Bela! Bela! ― começou a exclamar,
secundada pelos restantes membros do grupo, enquanto os pais, no grupo,
ansiosos, chamavam a si os seus filhos.
Espalharam-se à procura, até por entre a
multidão. Mas, nessa altura, a Belinha, já muito aflita, se tinha
encaminhado para a igreja, na mira de, pelo menos, ver a avó.
Alguém do grupo familiar lembrou que a
menina talvez tivesse ido para o parque infantil ali ao lado, e todos
correram para lá.
Sem ver a avó, a menina entrou mesmo na
igreja, a pensar que ela ainda não tinha saído. Andou de banco em banco,
lembrando-se de que, das vezes que fora com a avó à missa, ela ficara a
rezar quando já quase todos tinham saído. Porém, não a encontrou. Num
pranto, veio para a porta da igreja e também não viu a família.
Então, um homem de tez escurecida
perguntou-lhe porque estava a chorar, e ela disse que não sabia da mãe. O
homem pegou-lhe na mãozinha, disse:
―
Eu sei onde está a tua mãe. Eu levo-te lá.
O que fez foi meter a menina nos lugares
traseiros
da carrinha, afivelar-lhe o cinto e sair rápido
do local.
Quando chegou ao acampamento, deixou a
carrinha longe do enlameado, fechou-a. Depois, chamou a sobrinha, disse-lhe,
em voz baixa:
―
Anabela,
fiz um achado que vai ser rendoso. Está ali na carrinha. Já telefonei ao
chefe da rede agora, o Zeferino, que vem cá amanhã buscá-la. Ficas
encarregada de zelar pela mercadoria. Vais para a carrinha, desmanchas os
bancos e preparas-te para dormir lá de noite.
Entregou-lhe a chave.
Não te esqueças de levar também comida,
incluindo bolachas. Não sais de lá de dentro até a mercadoria ser entregue.
Tapa já os vidros com jornais, como costumas fazer quando dormimos lá. Se
alguém se aproximar muito e tentar entrar, destapa o pára-brisas e foge com
a carrinha. Telefona-me depois de onde estiveres
Levou a mão ao cinto por trás das costas,
por baixo do casaco:
―
Toma lá esta pistola. Dá um tiro para o ar se te
vires mesmo atacada e não conseguires fugir, que eu corro logo.
Anabela, curiosa com mercadoria assim tão
valiosa, viu se a pistola estava travada, meteu-a na sua sacola, foi
rapidamente ver que achado era aquele. Pensou:
“É qualquer coisa certamente muito valiosa, ouro ou joias, talvez, dado que
me entrega assim a chave da carrinha e, também, a sua preciosa pistola.
Agora poderia, bem, era dar-lhe eu o tiro que desejo há tanto tempo e depois
fugir na carrinha... Mas para onde? Os outros apanhavam-me logo...”
Quando abriu, ficou comovida com o
espetáculo da menina, agora num pranto desabalado, a sentir um imenso
perigo.
“Isto é crueza demais... Pobre criança... Nesta altura, os pais estarão
desesperados e certamente já foram à guarda. Entre hoje e amanhã, corremos é
o risco de irmos todos presos; e, eu, sem dúvida nenhuma...
Deixou a criança continuar com o cinto,
segurou-a na cara, deu-lhe um beijo na testa, perguntou:
―
Como te chamas?
―
Bela.
―
Anabela?
―
Sim.
―
Tens o meu nome, querida... Não chores mais, minha linda. Vou ver se consigo
entregar-te aos teus pais.
“Se entregar a criança, consigo talvez proteção para me livrar do meu tio...
É agora, ou nunca...”.
Pôs a carrinha a trabalhar, saiu rapidamente do acampamento.
Só parou num lugar vago perto da igreja.
Onde entrou com a menina. Esta agora, caladinha, mais esperançosa por se ver
no local onde se tinha perdido.
O prior já não estava, mas atendeu-a o
coadjutor, Francisco, um rapaz de 28 anos, bem parecido, que era quem lhes
dava os restos de comida quando a fome apertava no acampamento, e ela vinha
com o tio pedi-los à igreja.
Anabela contou a história, pediu para o
padre entregar a criança na guarda e para não revelar quem a entregara,
senão poderia ser presa.
O coadjutor apressou-se a levar a menina
ao posto da guarda, contando que alguém a tinha deixado na igreja. Inquirida
a criança, esta dizia, só, que um homem feio e grande a tinha levado da
igreja a dizer que a ia entregar à mãe, a deixara fechada num carro e que,
depois, tinha sido uma boa rapariga que, nesse mesmo carro, voltara a
trazê-la à igreja.
Havia já um alarme na guarda, de que uma
criança tinha desaparecido, e foi fácil e rápido avisar os pais. Estes
acorreram imediatamente ao posto. Agora a Belinha chorava, mas de alegria
nos braços da mãe...
Voltando para a igreja, o coadjutor
ouviu a história toda da vida de Anabela. Os pais tinham morrido num
acidente de carro, quando ela era bebé, e foram uns tios que a criaram.
Tinha ela doze anos, a tia não resistira aos maus tratos do tio. Fora também
a partir dessa altura, que ele a obrigava a dormir com ele e a tomar a
pílula.
Com dezoito anos, Anabela não suportava
mais aquela escravidão. E agora corria o risco de ser morta pelos seus.
―
Se não me ajuda, mato-me, antes que me apanhem e me torturem.
― E mostrou a pistola ao padre.
―
Ai, credo! Guarda lá isso outra vez!...
A primeira coisa que se fez foi a Anabela
ir deslocar a carrinha para bem longe da igreja. Depois, a jovem enviou uma
SMS ao tio informando onde estava e o local escondido da chave.
Fechada a igreja, sem saber que fazer à
moça, que, disse ela, também não queria conventos, Francisco pensou em
escondê-la provisoriamente nas caves da igreja, há muito tempo não
visitadas. Porém, havia o boato de nessas caves existirem ratos com
abundância. Anabela disse, então, que não tinha medo nenhum desses bichos e
que até já os tinha comido.
Francisco desceu com ela às caves,
escolheu aquela dependência com porta que lhe pareceu menos susceptível de
entrarem os roedores. Depois, os dois acarretaram para lá uma cadeira e um
sofá-cama, com as respetivas roupas de cama, que estavam numa dependência
normalmente fechada, reserva que existia para um imprevisto de haver
necessidade de alguém pernoitar na igreja, Francisco pensou que o
desaparecimento da mobília era capaz de fazer menos escândalo do que a moça
ser aí encontrada.
Por fim, a pedido dela, deu-lhe uma
faca com bico, que, argumentou, era para se defender dos ratos, se acaso
fosse atacada. Ante a pergunta dele: se, a ela, não lhe bastava a pistola,
respondeu: que só tinha balas para poucos ratos e que a pontaria também não
era muita...
Tudo se manteve assim durante dois dias,
ele a levar-lhe comida, sempre no susto de ver a moça ferida numa eventual
luta com os ratos; com estes, de certeza, espalhados numa mortandade, à
facada, e a necessidade, depois, de limpeza do campo de batalha... Contudo,
ao abrir da porta, receoso do cheiro nauseabundo dos ratos, o que lhe vinha
sempre era uma impressão de aragem silvestre, talvez resultado de qualquer
produto com que ela se lavava ou de que a roupa dela estava impregnada.
Passado este tempo nessa situação
insustentável, Francisco perguntou à Anabela se ela estava disposta a ser
uma serviçal dama de companhia de uma senhora idosa. Ela disse que sim, com
a condição de ter tempo livre para poder ir a uma escola, com o fim de
arranjar uma profissão e poder encontrar o homem futuro pai dos filhos que
queria muito ter.
Francisco era proveniente de uma antiga
família fidalga, ainda com a tradição de manter um padre de geração em
geração. Para azar dele, era filho único, mas, como sempre fora muito dócil,
não foi difícil convencê-lo a manter a tradição, incentivado por um tio, que
até já era monsenhor. Havia outro hábito naquela família, uma pecha: era o
de casarem primos direitos para não dispersarem heranças. Talvez por isso,
morriam todos muito novos, com maleitas quase sempre as mesmas. Ainda
Francisco estava a concluir o primeiro ano do seminário, morreu-lhe a mãe,
com um cancro irreversível na mama. Dois anos depois, perdeu o pai, como uma
cirrose fatal, em consequência do alcoolismo extremo em que se afundara
depois da morte da mulher.
Além do tio, o monsenhor, que lhe prometia
influências na vida sacerdotal, Francisco tinha uma outra tia, esta feiosa
mas gentil, que não casara. Afeiçoada ao sobrinho desde que ele era bebé,
como a um filho que não tinha tido, a tia ficou depois como tutora de
Francisco, após a morte do pai.
Pois
bem, era como serviçal e dama de companhia desta sua tia, a proposta que
Francisco fez à Anabela.
Condições dela aceites pela sexagenária,
voltaram a repor na igreja o mobiliário onde estivera antes, e Anabela foi
retirada do quarto dos ratos. Encolhida nos bancos traseiros do carrito de
Francisco, para não ser eventualmente vista por alguém do seu grupo, foi
levada à presença da tia, na quinta lá para as serranias.
Gostaram logo uma da outra. A sexagenária,
comovida com os dramas que a rapariga tinha vivido e a prova de dignidade em
salvar uma criança destinada certamente a uma vida horrível de escrava
sexual. Anabela, cativada com a bondade natural da senhora.
Passados uns tempos, os três eram já como
se fossem da mesma família: Anabela a chamar tia à senhora, na imitação do
Francisco, a sexagenária a dirigir-se-lhe como filhinha e o Francisco a
dizer maninha.
Contudo, um dia, ele teve uma surpresa.
Depois de lhe perguntar, ansioso, se ela, na escola, já tinha encontrado o
homem da sua vida, como dissera que desejava, ouviu:
―
O homem da minha vida és tu. Era de ti que eu gostava de ter filhos... Um
homem bom, entre tantos maus... O sonho de toda a mulher...
Perturbado, Francisco disse, só, nessa
altura, retirando-se e fingindo-se indiferente:
―
Estragaste tudo... Já não te posso chamar a minha
maninha. Agora há incesto verbal...
―
Incesto, uma ova...
Tiveram mais tarde explicações, numa das
poucas vezes que ele, prudentemente, agora vinha visitar a tia. Francisco
aconselhou Anabela que ela tirasse o sentido de o ter como pai dos filhos,
porque, como padre católico, ele não poderia nunca ter filhos; e ela
argumentou:
―
Sabe-se de muitos padres católicos que têm tido filhos, em todos os tempos.
Então, a Igreja tem duas alternativas: ou fecha os olhos e os ouvidos na sua
diplomacia costumeira, ou perde o padre. Ora os preciosos padres, como tu,
estão agora a ser uma espécie em vias de extinção...
Francisco, finalmente, sem argumentos
válidos, fechou essa conversa:
―
Gosto de ti como duma irmã mais nova. Deves
procurar noutro lado esse pai para os teus filhos, porque não sinto
interesse sexual por ti.
E ela pensou:
“Ai, não?... Hum!... Os olhares de um homem nunca enganam...”
Nessa mesma noite, Anabela, quando sentiu
tudo em silêncio em casa, saiu só em camisa de dormir do seu quarto e, pé
ante pé, entrou de mansinho no quarto dele.
“Vamos lá ver...”
Tirou a camisa, abriu a roupa, enfiou-se
na cama.
Francisco acordou com a intrusão e, pela
aragem silvestre, percebeu imediatamente quem tinha agora ali ao seu lado.
Disse “não” só uma vez e sem grande convicção. Quando a aragem o envolveu
aos beijos, não disse mesmo mais nada.